Gregory Marks
22 de fevereiro de 2020
(original aqui)
Dentro das páginas do trabalho colaborativo de Gilles Deleuze e Felix Guattari há imagens perturbadoras recorrentes. Falando da sede implacável que o capital sente por trabalho vivo, eles apontam que "não é mais a crueldade da vida, o terror de uma vida contra a outra, mas o despotismo post-mortem" ou o despotismo do vampiro ("O Anti-Édipo"). Sobre os indivíduos criados dóceis e maleáveis pelo Estado, eles escrevem que isso é deliberado: o Estado precisa que nasçam desse jeito, aleijados e zumbificados ("Mil platôs"). De sua própria política virulenta, eles exigem que "oponhamos epidemia à filiação, contágio à hereditariedade, povoamento por contágio à reprodução sexual (…) Bandos, humanos ou animais, proliferam por contágio, epidemias, campos de batalha e catástrofes (…) O vampiro não filia, ele infecta" (OAE). Apesar de toda a alegria que proclamam, e dos variados "materialismos vitais" que hoje afirmam filiação a partir desses pais duvidosos, os dois volumes de "Capitalismo & Esquizofrenia" são, indiscutivelmente, compêndios de escuridão e terror.
E, no entanto, é evidente que as imagens mais mórbidas de Deleuze e Guattari aparecem sobretudo em suas declarações mais políticas: quando retomam o relato de Marx sobre a "sede vampírica do capital pelo sangue vivo do trabalho", quando vituperam as monstruosidades da subjugação estatal, ou quando postulam uma infiltração viral das próprias artérias que alimentam tanto o Estado quanto o capital. Tendo isso em vista, o objetivo deste artigo é examinar a política radical de Deleuze e Guattari por meio de suas imagens ocultistas e figuras monstruosas. Especificamente, e com referência ao estudo de Margaret Cohen sobre os marxismos fantasmáticos de Walter Benjamin e André Breton, proponho uma abordagem de “marxismo gótico” para a obra de Deleuze e Guattari.
Os traços que Cohen identifica como típicos desse Marxismo Gótico proposto podem ser divididos em três grupos: em primeiro lugar, "uma noção de crítica que vai além do argumento lógico e da oposição binária, em direção a uma encenação fantasmagórica mais próxima da terapia psicanalítica", acompanhada de um "apelo ao sujeito cindido da psicanálise para modificar o sujeito consciente e racional caro ao marxismo prático" [Nota do editor do "Opinião Dissonante": optamos por não reproduzir nesta tradução as indicações bibliográficas, que podem ser acessadas no texto original, e reportamos a ele o leitor interessado nas fontes das citações e trechos entre aspas]. Em segundo lugar, a ênfase nos "fantasmas e fantasias de uma determinada cultura como um campo significativo e rico de produção social, em vez de uma miragem a ser dissipada", além da "valorização dos detritos e trivialidades de uma cultura, bem como de suas práticas estranhas e marginais". E, em terceiro lugar, a "valorização da sensorialidade do visual" para além da "realização e/ou figuração da demonstração racional", em direção ao objetivo da "emancipação completa de todos os sentidos e qualidades humanas" sugerido por Marx nos Manuscritos de 1844.
Em termos mais simples, podemos apresentar esses três pontos da seguinte forma:
(1) Um modo de crítica que não se limita a corrigir uma falsidade com uma verdade aparente, mas que toma como objeto as formações do desejo que precedem o sujeito racional e determinam as crenças que podem emergir à consciência.
(2) A busca pelos subterrâneos psíquicos e sociais de uma determinada sociedade, incluindo o interesse pelos elementos banais, marginais e esquecidos que muitas vezes permanecem não ditos ou não reconhecidos.
(3) A centralidade da estética na tarefa de revelar as referidas estruturas libidinais da sociedade e de, ou nos despertar do "sono onírico repleto de sonhos" do capitalismo, ou então nos lançar ainda mais profundamente na fantasmagoria do capitalismo tardio.
No que se segue, utilizarei a formulação de Cohen como um diagnóstico para avaliar a possibilidade de um Marxismo Gótico específico aos escritos de Deleuze e Guattari. Essa reformulação do projeto de Deleuze e Guattari como simultaneamente gótico e marxista não é apenas uma tentativa de responder ao chamado de Cohen por uma redescoberta das correntes góticas subjacentes ao pensamento marxista, mas também uma tentativa de levar a sério sua proposição de um marxismo que traça um caminho afastando-se tanto do idealismo romântico quanto do racionalismo iluminista. Como espero deixar claro, o qualificativo “gótico” não se destina apenas a um marcador estético — denotando um marxismo com características sombrias ou espectrais —, mas traz à tona tanto os tropos góticos típicos da escuridão e do subterfúgio que atravessam essa tradição radical, quanto a crítica da ideologia e da subjetividade burguesa própria da própria poética gótica.
I: Guerras de Subjetividade
Começaremos pelo componente mais claramente marxista do pensamento de Deleuze e Guattari, a saber, a crítica do capitalismo, antes de passar aos elementos dessa crítica que a distinguem dos métodos do marxismo dominante. Para Marx, assim como para Deleuze e Guattari, o capitalismo é definido por sua "mobilização e conjunção de fluxos de dinheiro e fluxos de trabalho" para produzir um "sistema social radicalmente transformador que se funda" em momentos de ruptura e dissolução — aquilo que Deleuze e Guattari chamam de "linhas de fuga". Como escreve Nicholas Thoburn:
A essência do capital é que ele continuamente libera suas linhas de fuga — seus cientistas loucos, suas contraculturas, seus fomentadores de guerra — a fim de abrir novos territórios para a exploração. Trata-se, assim, de um processo perpétuo de estabelecimento e ruptura de limites.
Isso quer dizer que o capitalismo funciona como uma máquina em constante expansão, que simultaneamente desloca seus limites externos e se apropria de crises locais, flutuações e desastres para, pouco a pouco, devorar tudo o que lhe é exterior. Para citar "O Anti-Édipo", essa máquina "só pode operar aos solavancos, rangendo e se quebrando, em espasmos de pequenas explosões". Como observam Deleuze e Guattari, "o humor negro de Marx, fonte de 'O Capital', é o seu fascínio por uma tal máquina": por como ela funciona, como codifica e decodifica os fluxos capturados da produção desejante, como produz uma classe de proprietários para manter seus mecanismos.
Operando aos solavancos, o capitalismo produz, nas palavras de Deleuze e Guattari, uma "formidável acumulação esquizofrênica de energia ou de carga, contra a qual ele mobiliza todos os seus vastos poderes de repressão", mas que, ainda assim, ameaça lançar todo o sistema em um estado de colapso. Essa aceleração delirante atua não apenas no plano econômico ou ecológico, como Marx já havia deixado claro, mas também no plano da psicologia tanto dos indivíduos quanto dos grupos.
A crítica do capital passa então por esse saber de que o sujeito individuado é ele próprio um produto de coagulação psíquica e de privação, e de que os sofrimentos mentais do inconsciente privado são, por todos os lados, ultrapassados pelo social. Dentro desse sistema, escreve Anne Sauvagnargues, "o delírio já não encontra sua profundidade em uma origem individual, mas foge, ao contrário, como um líquido que escorre, se infiltra e se derrama por todo o campo social".
O que está em jogo na luta de classes não é, portanto, apenas uma questão da composição socioeconômica das classes, mas da formação libidinal-material da subjetividade. Como observa Guattari, "não se pode compreender a história do movimento operário se se recusa a ver que, em certos períodos, as instituições do movimento trabalhista produziram novos tipos de subjetividade, [em] verdadeiras guerras de subjetividade". Ao escreverem "Capitalismo & Esquizofrenia", Deleuze e Guattari contribuem para essa luta com a crítica dos modos de subjetividade disponíveis no socius capitalista e com a problematização do que significaria "colocar uma subjetividade liminar ou ‘fora da curva’ (seja ela a de um artista, de um místico ou de um feiticeiro) no centro da humanidade". E assim passamos ao nosso segundo traço do Marxismo Gótico: o desvelamento e a valorização do marginal e do não dito.
II: Os Estranhos no Interior
Ao escrever sobre o que está em jogo no pensamento histórico, Walter Benjamin observa que a tarefa do materialista histórico não é reavivar o passado "tal como ele realmente foi", mas apreender um fragmento dele que deve ser arrancado "de um conformismo que está prestes a dominá-lo". Essa apreensão da tradição ocorre sempre de modo surpreendente e sob pressão, em um momento de breve reconhecimento que inverte a ordem do dia e revela a barbárie ocultada pela história dos vencedores. De modo semelhante, para Deleuze e Guattari, o que emerge dessas condições sufocantes é uma forma de criação menor que escava seu próprio espaço a partir do interior de um regime maior. Ao escreverem sobre essa micropolítica em seu livro sobre Kafka, eles afirmam que ocupar uma posição menor é "ser uma espécie de estrangeiro dentro" da própria língua — mover-se entre seus "centros distintos de poder" e borrar "o que pode ser dito e o que não pode ser dito".
A política menor que habita esses espaços culturais exíguos não deve ser confundida com "um processo pluralista de grupos minoritários 'tomando a palavra' [ou] dando voz a uma identidade", pois uma identidade positiva só pode ser delineada e reivindicada com deferência à ordem maior da subjetividade e da significância. De fato, Deleuze e Guattari chegam a afirmar que o povo que poderia reivindicar essa posição menor está ausente, deixando toda política menor sem o fechamento de uma nação ou identidade fixa. Por essa razão, o menor nunca é simplesmente uma minoria, mas o processo de tornar-se-minoritário, de ser talhado a partir da população em geral. Como um significante flutuante sem um povo definível, a minoria deleuzo-guattariana é uma espécie de massa "proletarizada" que, assim como o proletariado de Marx, é definida por seu deslocamento em relação à estabilidade econômica e social e por seu objetivo último de abolir a autoidentidade.
Como um "relógio que anda adiantado", a política menor opera não apenas para acelerar esse processo de fuga diante dos poderes constituídos, mas também para antecipar os movimentos do "desejo capitalista, desejo fascista, desejo burocrático" ou, em uma palavra: "Thanatos". Ecoando a observação de Benjamin de que "nem mesmo os mortos estarão a salvo do inimigo, se ele vencer", Deleuze e Guattari também caracterizam a posição do menor por sua luta desesperada contra um inimigo que domina tanto a herança das lutas passadas quanto acena para um futuro de pesadelo. Com isso em vista, a arte — e especialmente a literatura — assume um papel novo e urgente.
III: O Delírio da Criação
Como voz da política menor, a literatura menor funciona como aquilo que Deleuze e Guattari chamam de uma enunciação coletiva, que não fala em nome de um autor individual nem sequer de um povo definível, mas daquele espaço negativo onde a individuação e a identidade se desfazem. Em vez de buscar numa voz autoral o sentido da obra literária, Deleuze e Guattari insistem que "não há um sujeito" em seu núcleo capaz de manter os fios unidos: "há apenas agenciamentos coletivos de enunciação".
Próxima do que Anne Williams chamou de "sonho público" do horror gótico — que desestabiliza e desfamiliariza a linguagem e a ideologia do presente —, a enunciação coletiva fala através das fissuras de uma língua maior para fazê-la explodir. O delírio da enunciação coletiva se abre para uma multidão de novos devires, novas composições de subjetividade e de sociedade que, de outro modo, permaneceriam reprimidas. Como escreve David Lapoujade:
Apenas novos delírios, novas fabulações, nos fazem voltar a acreditar. É por isso que devemos recriar a terra, os corpos, as línguas e a memória, tomar como ponto de partida populações moleculares, bandos e matilhas, e inventar sua genealogia esquizofrênica.
E assim retornamos mais uma vez às figuras proliferantes de horror e delírio na obra de Deleuze e Guattari, que não remetem a um simples impulso estético em direção ao macabro, mas colocam uma estética sombria e enlouquecida a trabalhar na construção de imagens de um mundo fora deste. Eles extraem das páginas de Kafka não apenas o devir-menor, mas também o devir-animal — animais que colocam Kafka em contato com "intensidades subterrâneas" que escapam às formas que lhe são impostas pela família, pelos negócios e pelo Estado. De Virginia Woolf, citam a insistência de Clarissa Dalloway de que jamais voltará a dizer "eu sou isto, eu sou aquilo", e procuram mapear o devir-mulher que brota dessa recusa da mulheridade simples, um devir que é "capaz de atravessar e fecundar todo um campo social, de contaminar os homens, de arrastá-los nesse devir". Há ainda os devires-imperceptíveis, que seguem uma linha de fuga até o ponto em que "já não há sequer forma alguma — nada além de uma linha abstrata pura", arrebatada pelo fluxo inexprimível e não dito do mundo. Ou, em outra direção, o sujeito é invadido por um enxame de devires, como nos contos de horror cósmico de H. P. Lovecraft, nos quais descobrimos o pavor e o êxtase de uma anômala "multiplicidade que habita em nós".
IV: Outro Deleuze Maldito?
Tendo apontado para as novas concepções de crítica, subjetividade e estética apresentadas no projeto de Deleuze e Guattari, bem como para sua sobreposição com o Marxismo Gótico de Cohen, permanece ainda a questão: o que está em jogo nessa releitura? Hoje existem escolas inteiras de deleuzianismos, cada uma com seus próprios textos canônicos e leituras sagradas. Há um Deleuze Alegre e um Deleuze Sombrio, um Deleuze para o vitalista e um Deleuze para o materialista; descobrimos Deleuzes ora democráticos, ora herméticos, tecnocapitalistas e ambientalistas. Devemos acrescentar mais um Deleuze degradado a essa lista de pretendentes faccionais? Talvez — mas apenas para dissipar essas pressuposições e "escapar do coro de capela da alegria para o isolamento sombrio da cripta", onde possamos desenterrar outro Deleuze, tantas vezes oculto aos olhares inquisitivos.
Em oposição às muitas tentativas de desarmar politicamente as obras colaborativas de Deleuze e Guattari — de transformar rizomas em redes sociais e nômades em contratados militares privados —, a presente leitura exige que reconheçamos o lugar fundamental concedido a Marx ao longo dos dois volumes de "Capitalismo e Esquizofrenia". Seguindo o exemplo de Fredric Jameson, devemos descobrir "até que ponto a problemática de Deleuze inclui a problemática marxiana e endossa problemas e questões marxianas", não para acrescentar um Deleuze marxista ao nosso repertório, mas para avaliar a validade daquelas formulações deleuzianas que convenientemente ignoram a presença constante de Marx.
O que o adjetivo gótico acrescenta a esse empreendimento marxista é uma qualificação do que exatamente a problemática marxista oferece à filosofia de Deleuze e Guattari e, por sua vez, do que os próprios compromissos de Deleuze e Guattari fazem com esse arcabouço. Aqui podemos retornar à formulação de Cohen do Marxismo Gótico presente em Benjamin e Breton, que articula abordagens psicanalíticas da subjetividade com uma consciência marxista da constituição social da psique individualizada. Cohen escreve que esse Marxismo Gótico visa "romper a distinção base–superestrutura por meio de um apelo às forças libidinais que permeiam ambas" e, desse modo, integrar o psicológico e o econômico numa concepção mais ampla das forças materiais que compõem uma sociedade.
De modo semelhante, escreve Nicholas Thoburn, "Deleuze não compactua com uma distinção marxista vulgar entre 'base' e 'superestrutura'; ao contrário, ele segue Marx numa imersão no domínio da produção da vida — uma produção que é o plano de todos os processos, fluxos e constrangimentos da política, da economia, das ideias, da cultura, do desejo, e assim por diante". Em contraste com o deslocamento pós-marxista que se afasta das questões da produção, Deleuze e Guattari intensificam precisamente essa questão e fazem colapsar as preocupações pós-marxistas habituais com a cultura política e a sociedade civil numa compreensão ampliada da produção desejante. Para Deleuze e Guattari, a formação de movimentos políticos, as maquinarias do Estado e os circuitos do capital retornam sempre ao "problema do desejo, e o desejo faz parte da infraestrutura".
Nessa fusão do libidinal com o econômico, Deleuze e Guattari não apenas percorrem o mesmo terreno coberto por autores anteriores dessa vertente marxista menor. Assim como Marx, antes deles, mobilizou o vampiro e o lobisomem como figuras da sede voraz do capital, e Benjamin adotou as personas do flâneur e do jogador para enxergar o capitalismo a partir de seus becos mais sombrios, Deleuze e Guattari também povoam seus escritos com figuras de privação e predação libidinal: o zumbi, o louco, o feiticeiro, as matilhas de lobos e os enxames de ratos. Esse “Marxismo Gótico” é aquele que, nas palavras de David McNally, "insiste, entre outras coisas, em atravessar os espaços noturnos do submundo capitalista, em visitar as masmorras secretas que abrigam corpos trabalhadores em dor". Cada figura, cada imagem hedionda, contém em si um reflexo das estruturas que atravessam seu corpo, das linhas de fuga que ela traça e das forças de produção libidinal que a formam — assim como a nós.

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