Karl Korsch
1923
("Marxismo e filosofia",
trad. José Paulo Netto,
Ed. UFRJ)
Terminologicamente, é preciso afirmar, antes de mais nada, que Marx e Engels nunca pensaram em caracterizar a consciência social e a vida espiritual como pura ideologia. A ideologia é somente a consciência falsa (verkehrte), particularmente aquela que atribui a um fenômeno parcial da vida social uma existência autônoma – por exemplo, as representações jurídicas e políticas que consideram o direito e o Estado como poderes autônomos que pairam acima da sociedade.
Na passagem em que Marx deu as indicações mais precisas sobre a sua terminologia, verifica-se que, no conjunto de relações materiais que Hegel designou como sociedade civil (bürgerlische Gesellschaft), as relações sociais de produção (a estrutura econômica da sociedade) constituem o fundamento real sobre o qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, de uma parte, e a que correspondem, de outra parte, formas determinadas da consciência social. Destas formas da consciência social, tão reais na sociedade quanto o direito e o Estado, fazem parte sobretudo o fetiche da mercadoria ou o valor, analisados por Marx na Crítica da economia política, bem como as outras representações econômicas que deles derivam.
Ora, a concepção de Marx e Engels se caracteriza precisamente pelo fato de eles jamais qualificarem como ideologia esta ideologia econômica fundamental da sociedade burguesa. Assim, segundo a terminologia marxiana, apenas as formas de consciência jurídicas, políticas, religiosas, estéticas ou filosóficas podem ser ideológicas – e mesmo estas, como veremos, não o são necessariamente em todos os casos; só se tornam ideologias sob certas condições, que já indicamos. É este lugar particular conferido às representações econômicas que assinala a nova concepção da filosofia que distingue o materialismo dialético do último período, que alcançou maturidade plena, do materialismo dialético ainda não totalmente desenvolvido do primeiro período. Então, na crítica teórica e prática da sociedade a que se dedicam Marx e Engels, a crítica da filosofia passa a ocupar o segundo – podemos mesmo dizer: o terceiro, o quarto ou o último – lugar. A "filosofia crítica", que, para o Marx dos Anais franco-alemães, representava ainda a tarefa essencial, vê-se transformada numa crítica mais radical da sociedade – que toma as coisas pela sua raiz – e se embasa na "crítica da economia política".
Inicialmente, Marx afirmou que o crítico "poderia tomar qualquer forma da consciência teórica e prática e expor, a partir das formas próprias da realidade existente, a realidade verdadeira como seu dever (ihr Sollen) e seu objetivo final"; subsequentemente, reconheceu que todas as relações jurídicas e políticas, como todas as formas da consciência social, para serem compreendidas, não podem ser tomadas em si mesmas nem a partir do desenvolvimento geral do espírito humano (como o faziam a filosofia hegeliana e pós-hegeliana), porque elas têm suas raízes nas condições materiais de existência que constituem "a base material e a ossatura" do conjunto da organização social.
A partir daí, uma crítica radical da sociedade burguesa não pode mais, como Marx escrevia em 1843, tomar qualquer forma de consciência teórica e prática: deve tomar aquelas formas que encontraram a sua expressão científica na economia política da sociedade burguesa. A crítica da economia política passa, assim, ao primeiro lugar, tanto na teoria quanto na prática. Contudo, esta forma mais profunda e mais radical da crítica revolucionária de Marx à sociedade não deixa de ser uma crítica de toda a sociedade burguesa e, pois, também de todas as suas formas de consciência. Ainda que, no seu último período, a crítica da filosofia pareça ocupar apenas incidentalmente a Marx e a Engels, eles jamais a descartaram; de fato, desenvolveram-na de modo mais radical e mais profundo. Para demonstrá-lo, basta em face da ideia equivocada que geralmente se faz dela nos dias correntes – restabelecer a significação plenamente revolucionária da crítica da economia política em Marx; com isto, não só ela é reinserida no sistema da crítica marxiana da sociedade, mas, ao mesmo tempo, reencontra-se a relação que ela mantém com a crítica de ideologias como a filosofia.
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