sábado, 28 de outubro de 2023

Ghassan Kanafani - Uma carta de Gaza

 
Ghassan Kanafani (1936-1972), escritor palestino e
dirigente da Frente Popular para a Libertação da Palestina.

Ghassan Kanafani

1956
(original aqui)

Prezado Mustafá

Recebi a carta em que você diz estar fazendo tudo que for necessário para que eu esteja com você em Sacramento. Também recebi a notícia de que fui aceito no Departamento de Engenharia Civil na Universidade da California. Eu te agradeço por tudo, meu amigo. Mas as coisas que vou te contar agora te deixarão surpreso - e não duvide delas. Ao contrário, hoje vejo as coisas com clareza e já não sinto a menor hesitação. Portanto não, meu amigo. Eu mudei de ideia. Eu não te acompanharei para "as terras ferteis e verdejantes de rostos sorridentes", como você escreveu. Não. Ficarei aqui e não irei embora.

Realmente me chateia que nossas vidas não seguirão o mesmo curso, Mustafá. Quase posso ouvir você me lembrando da nossa promessa de seguirmos juntos, e como falávamos: "Vamos ficar ricos!". Mas não há nada que eu possa fazer, meu amigo. Sim, ainda me lembro de apertar sua mão no hall do aeroporto do Cairo, enquanto olhava os motores aquecendo. Naquele momento tudo girava como aqueles motores ensurdecedores, e você estava parado na minha frente, a cara redonda silenciosa. 

Sua cara, na verdade, não mudou desde os tempos em que você crescia no bairro de Shajiya em Gaza, com exceção, claro, de algumas rugas. Crescemos juntos e nos entendíamos completamente bem. Prometemos seguir juntos até o fim, mas...

"O avião parte em quinze minutos. Não fique com esse olhar vazio! Escute: você irá para o Kuwait no próximo ano e economizará o suficiente para se mudar de Gaza para a Califórnia. Vamos começar juntos..."   

Naquele momento eu te observava falar, naquele teu jeito rápido e sem pausas. Mas de alguma forma eu sentia que você não estava completamente feliz com seu voo. Você não poderia dar três bons motivos para isso. Eu também estava sofrendo, mas o pensamento mais claro era: por que não abandonamos esta Gaza e fugimos? Por que não? Tua situação estava começando a melhorar, contudo. O ministro da Educação do Kuwait te deu um contrato, apesar de terem me negado um. Você me enviava dinheiro para remediar minha pobreza. Você queria que eu o aceitasse como sendo um empréstimo, para que eu não me sentisse humilhado. Você conhecia a situação da minha família e sabia que meu magro salário na UNRWA [n.t.: Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Médio] não era suficiente para sustentar minha mãe, a viúva do meu irmão e seus quatro filhos.

"Preste atenção: escreva todo dia... toda hora... todo minuto! A avião já vai partir. Adeus! Ou melhor, até a próxima!".

Você me beijou no rosto e se dirigiu para o avião. Ao se virar, pude ver suas lágrimas.

Mais tarde o Ministério da Educação do Kuwait enfim me deu um contrato. Não há necessidade de repetir os detalhes de como minha vida tem sido. Eu sempre te escrevi sobre tudo. Minha vida tem transcorrido arrastada, como se eu fosse uma pequena ostra solitária, lutando vagarosamente contra um futuro que se anuncia sombrio. Tudo parecia pegajoso e morno, sempre um lento arrastar para o fim do mês.

No meio do ano, aquele ano, os judeus bombardearam o distrito central de Sabha e atacaram Gaza, nossa Gaza, com bombas e lança-chamas. Esse episódio poderia ter alterado minha rotina, mas não dei muita atenção; eu estava deixando essa Gaza para trás e me mudaria para a Califórnia, e eu poderia viver minha vida após tanto sofrimento. Eu odiava Gaza e seus habitantes. Tudo naquela cidade decadente me lembrava rabiscos cinzas desenhados por um doente. Sim, eu enviaria dinheiro para ajudar minha mãe e a viúva de meu irmão e seus filhos, mas eu próprio me libertaria desses laços, na verde Califórnia, longe do fedor de derrota que há sete anos tomava minhas narinas. A simpatia que me ligava aos meus sobrinhos, à mãe deles e à minha, não seria suficiente para atenuar minhas dores pessoais. Eu não poderia permitir que isso me arrastasse mais ainda para baixo. Eu precisava fugir!

Você conhece isso porque também já se sentiu assim, Mustafá. Que nome dar a esse laço indefinido que temos com Gaza e que embota nossa vontade de fugir? Por que não conseguimos analisar as coisas de forma clara? Por que não deixamos para trás essas dores e rumamos para um futuro mais brilhante que nos console? Por quê? Nós não sabíamos exatamente.

Quando eu saí no feriado em junho para organizar minhas coisas, ansioso pela minha partida, o começo rumo a essas pequenas coisas que dão um belo sentido à vida, eu encontrei Gaza do jeito que eu a conhecia, fechada como uma casca de caramujo jogada na areia às portas do matadouro. Essa Gaza de ruas estreitas oprimida como alguém que sonha um pesadelo... essa Gaza! Quais são as causas obscuras que atraem um homem para sua família, sua casa, suas memórias, como uma fonte atrai um rebanho de cabras?  Eu não sei. Tudo que sei é que fui até a casa da minha mãe naquela manhã. Quando cheguei a mulher de meu irmão perguntou, chorando, se eu visitaria sua filha, Nadia, no hospital de Gaza, como a mesma tinha pedido. Você conhece Nadia, a filha de treze anos do meu irmão?  

Naquela noite comprei maçãs e fomos visitar Nadia no hospital. Eu sabia que havia alguma coisa que minha mãe e minha cunhada estavam escondendo de mim, que não podiam murmurar, algo estranho em que eu não poderia me meter. Eu amava Nadia, como amava toda aquela geração tão acostumada com a derrota e o desalojamento que ter uma vida feliz parecia uma coisa estranha.

O que aconteceu naquele momento? Eu não sabia. Entrei no quarto branco muito silenciosamente. Crianças feridas têm algo de santidade, sobretudo se são feridas crueis e dolorosas. Nadia estava na cama, as costas apoiadas em um grande travesseiro sobre o qual o cabelo se espalhava. Seus grandes olhos estavam silenciosos e uma lágrima brilhava. Seu rosto estava calmo mas muito eloquente, como deveria ser o rosto de um profeta torturado. Nadia era ainda uma criança mas parecia mais do que isso, parecia muito mais velha do que uma criança.

"Nadia!"

Não tenho ideia se fui eu ou alguém atrás, mas ela levantou os olhos para mim. Senti-me derretendo como um torrão de açúcar que cai em uma caneca de chá quente.

Ela sorriu levemente e ouvi sua voz: "Tio! Você voltou do Kuwait?"

Então ergueu o corpo com dificuldade. Acariciei suas costas e sentei ao seu lado.

"Nadia! Eu trouxe presentes do Kuwait para você, muitos presentes. Eu esperarei que você consiga sair dessa cama, totalmente curada, e ir para minha casa recebê-los. Comprei aquela calça vermelha que você me pediu. Sim, comprei sim".

Era uma mentira nascida daquele momento tenso, mas tive a impressão de estar sendo sincero pela primeira vez. Nadia tremia como se estivesse recebendo um choque elétrico. Baixou a cabeça em silêncio e pude sentir minha mão molhada de suas lágrimas.

"Fale alguma coisa, Nadia! Você não queria a calça vermelha?" Ela levantou os olhos para mim e pareceu que diria alguma coisa, mas cerrou os dentes. Ouvi sua voz novamente, bem distante.

"Tio!" 

Ela estendeu a mão, levantou o lençol branco que cobria seu corpo e apontou para sua perna, amputada desde o alto da coxa.

Meu amigo... Jamais esquecerei a perna de Nadia, amputada desde o alto da coxa. Não! Nunca esquecerei a dor no rosto nela e que ficará marcada para sempre. Ao deixar o hospital minhas mãos apertavam os dois pounds que eu havia levado para ela. O sol despejava nas ruas uma cor de sangue. E Gaza estava nova em folha, Mustafá! Nós nunca a víramos daquele jeito. As pedras empilhadas no começo do quarteirão onde moramos tinham um significado, e pareciam ter sido colocadas ali justamente para que isso ficasse claro. Essa Gaza onde moramos e com cujo povo passamos anos de derrota estava de alguma forma diferente. Para mim parecia apenas um começo. Eu não sei por que pensei que parecia apenas um começo. Eu imaginei que a rua principal que me levava de volta para casa era apenas o começo de uma longa, longa estrada levando a Safad [n.t.: cidade ao norte da Palestina de onde os árabes foram expulsos pelas milícias sionistas em maio de 1948]. Tudo nesta Gaza pulsava de uma tristeza que não se limitaria à lamentação. Era um desafio: mais do que isso, se tratava de reclamar uma perna amputada!

Saí pelas ruas de Gaza, ruas iluminadas de sol. Contaram-me que Nadia perdeu a perna quando se jogou para proteger seus irmãos menores das bombas e chamas que atingiram a casa. Nadia poderia ter escapado, poderia ter fugido e salvo sua perna. Mas ela não fez isso.

Por quê?

Não, meu amigo, eu não irei para Sacramento e não arrependo. Não, e também não terminarei o que começamos juntos em nossa infância. O sentimento estranho que você teve ao deixar Gaza deve se expandir dentro de você. Deverá se expandir, para que você se encontre, aqui, entre os destroços da derrota.

Não irei até você. Mas você, volte para nós! Volte, para aprender com a perna de Nadia, amputada desde o alto da coxa, o que é a vida e o quanto vale a existência.

Volte, meu amigo! Estamos esperando por você. 

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