terça-feira, 8 de setembro de 2020

Michael Hardt - Lembrança de David Graeber

David Graeber (1961-2020). Imagem via Wikimedia.

Michael Hardt

07 de setembro de 2020
(original aqui)

David Graeber foi um acadêmico-ativista exemplar. Todos nós conhecemos inúmeros professores que eventualmente participam de algum protesto ou assinam petições; e ativistas que pesquisam e ensinam. David, contudo, era tão profundamente engajado nessas duas dimensões que seria impossível destacar a principal. Claramente, para ele o ensino e o ativismo se enriqueciam mutuamente em uma troca constante.

Eu encontrei David pela primeira vez durante as grandes lutas alter-globalização decorrentes das manifestações contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle em 1999. Ele se destacou pela inteligência de suas intervenções nos atos, sem dúvida, mas o que mais me impressionou foi sua dedicação à militância prática, sua paciência para os encontros intermináveis e sua disposição para se deslocar para onde quer que irrompesse a próxima luta. De fato, ao longo dos últimos vinte anos ele parecia onipresente nos encontros ativistas.

Ele é bastante celebrado por sua participação no "Occupy Wall Street" de 2011, claro, e seu apoio mais recente à luta em Rojava teve muita visibilidade, mas ele também participou de inúmeros outros encontros e eventos, maiores ou menores, de reduzida visibilidade. Eu nunca interpretei a dedicação de David à militância como sendo uma obrigação, como se ele estivesse fazedo um sacrifício ou cumprindo um dever. Ao contrário, ele é um daqueles felizardos que descobriram a satisfação e o prazer da vida de ativista, apesar de seus rigores e dificuldades.

Eu me lembro de encontrar David em Tóquio em junho de 2008, antes das reuniões do G8 no Japão. Eu estava exausto não apenas do voo pelo Pacífico, mas também pelas horas de detenção e interrogatórios na chegada ao aeroporto de Tóquio. As autoridades japonesas tinham uma lista de ativistas internacionais a serem detidos e interrogados. Porém, eu rapidamente deixei de lado a auto-piedade quando soube que David tinha retornado de uma atividade de militância fora da cidade, dormido em uma barraca na chuva e tido uma intoxicação alimentar. Compreensivelmente ele estava pálido e fraco, mas seu espirito não estava amolecido. Fez com entusiasmo seus discursos nos encontros e protestos de rua. Era difícil não se sentir estimulado por sua energia.

Um dos aspectos da escrita de David que eu particularmente admirava era o jeito como combinava pesquisa acadêmica séria com um tom popular e acessível— e frequentemente humorado. Essa combinação de estilos de escrita é, de fato, outra de suas facetas como acadêmico-ativista. Em seus escritos ele não hesita em se aprofundar em complexos temas da história da antropologia, por exemplo, mas isso é sempre trazido para enfrentar problemas políticos contemporâneos, como endividamento e exploração capitalista. Isso importa muito, sem dúvida, para seu amplo público leitor.

Outro elemento que contribui para o grande interesse em seu trabalho é o que costumam considerar otimismo, apesar de eu não achar que esse termo seja adequado. O que acontece é que sua análise e crítica das formas contemporâneas de dominação (incluindo as relações econômicas e sociais do capitalismo, Estado e violência policial, o enfraquecimento da cultura do trabalho e outras) são sempre acompanhadas da afirmação de alternativas democráticas e reais. Ele sempre esteve antenado, sem dúvida graças ao seu olhar de antropólogo, com as relações democráticas sociais que já se encontram presentes em nossas interações diárias.

Tais experiências de alternativas democráticas, então, são intensificadas e multiplicadas em organizações ativistas e, particularmente, nas experiências de ocupação e acampamentos formadas nas décadas recentes. David tinha a grande crença de que mesmo pequenas experiências de novas relações democráticas poderiam prefigurar poderosos desenvolvimentos futuros. Eu sou relutante em chamar isso de otimismo haja vista que, enquanto otimismo implica na mera esperança de que outro mundo é possível, eu entendo que a confiança de David em um futuro democrático é totalmente realista, justamente em razão das lutas que vêm há tanto tempo buscando realizar isso.

David continuará sendo para mim um modelo de como viver a vida acadêmica e ativista em sua plenitude.

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