José Tagus
02 de agosto de 2019
(original aqui)
Nos últimos dias a imprensa tem repercutido a notícia dos ataques de garimpeiros à comunidade Wajãpi, no Amapá. Uma milícia de cerca de cinquenta indivíduos armados invadiu as terras indígenas, ocupou aldeias e assassinou lideranças, como o velho cacique de 68 anos Emyra Waiãpi. A mídia internacional tem repercutido os acontecimentos, engrossando o caldo do espanto mundial com a catastrófica política ambiental do governo bolsonarista, que prontamente tentou minimizar ou mesmo negar o episódio.
O massacre dos povos originários não é novidade: remonta há meio milênio, quando os europeus aqui desembarcaram. "A barbárie veio da Europa", disse Bartolomeo de las Casas perante o próprio Carlos V, em passagem citada por Roger Garaudy em seu livro "Rumo a uma guerra santa?". Não quero aqui romantizar os tempos pré-colombianos com suas guerras tribais e costumes que feriam nossas suscetibilidades "civilizadas", mas a tecnologia de morte e de destruição trazida pelos europeus foi coisa inaudita em terras americanas. Do Alasca à Patagônia impérios foram subjugados e outrora orgulhosas nações reduzidas a um estado de semi-mendicância em "reservas", alienadas cada vez mais de sua história, cultura, linguagem e tradições.
As sociedades americanas modernas têm ciência da reparação histórica que devem às populações originárias. "Reconocer la preexistencia étnica y cultural de los pueblos indígenas argentinos" é atribuição estatal na Constituição platina (art. 75, 17) e o México reconhece em si "una composición pluricultural sustentada originalmente en sus pueblos indígenas" (art. 2º), para ficarmos nesses exemplos. A Bolívia, que se define um Estado Plurinacional e tem uma liderança indígena à frente, está um patamar adiante: por exemplo, afirmando a fundamentalidade indígena, reconhece como idioma oficial, além do espanhol, "todos los idiomas de las naciones y pueblos indígena originario campesinos, que son el aymara, araona, baure, bésiro, canichana, cavineño, cayubaba, chácobo, chimán, ese ejja, guaraní, guarasu’we, guarayu, itonama, leco, machajuyaikallawaya, machineri, maropa, mojeño-trinitario, mojeño-ignaciano, moré, mosetén, movima, pacawara, puquina, quechua, sirionó, tacana, tapiete, toromona, uru-chipaya, weenhayek, yaminawa, yuki, yuracaré y zamuco" (art. 5º, I). O Brasil do jesuitismo e das entradas e bandeiras, ou, atualmente, o do bolsonarismo que prometeu nem mais um centímetro paras as terras indígenas, também dispõe de medidas protetivas em seu texto constitucional. O capítulo VIII do Título VIII ("Da Ordem Social") é dedicado aos índios, por exemplo, e é assegurada às comunidades indígenas "a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem" (art. 210, §2º). Bonito — e enquanto isso caciques são trucidados a facadas por bandeirantes redivivos.
Certo, é importante que haja essa proteção, ainda que meramente "constitucional"- afinal nossa direita é atrasadíssima e toda e qualquer conquista que consigamos lhe arrancar a ferro e fogo é bem-vinda. E tais conquistas devem ser defendidas contra retrocessos, pois como Trotsky disse quem é incapaz de defender as conquistas já obtidas jamais poderá lutar por novas. Mas evidentemente a disposição "legal" está muito aquém de garantir, concretamente, um status mínimo de dignidade e autodeterminação aos povos originários. A própria realização da Constituição de 1988 (lá se vão algumas décadas!), que evanesce no horizonte limitado do institucionalismo burguês, soa como utopia. É que as classes dominantes, sobretudo as do nosso continente e me reporto ao texto linkado neste parágrafo, são incapazes de introjectar sequer os valores liberais-iluministas de fins do século XVIII.
Para nós que entendemos que o socialismo é a única alternativa ecologicamente viável para a humanidade (e por isso "ecossocialismo" tem muito de redundante), achamos fundamental estar do lado dos povos originários, em sua defesa e na luta pelo resguardo das tradições e culturas centradas na natureza. Se a revolução industrial europeia trouxe o incremento da técnica, que é bom e deve estar a serviço do progresso da humanidade, não se pode relegar ao esquecimento as cosmogonias que equilibram "homem" e "meio"; exatamente como, em outras palavras, Erich Fromm fala do socialismo como o mundo "onde o homem se sente em casa" ("O conceito marxista de homem"). Entendemos que a visão indígena do universo — sem cairmos, insisto, em estereótipos ou romantizações — tem muito a ensinar nesse sentido.
Todo governo a serviço do capital tem como vítimas prioritárias os estratos mais vulneráveis da sociedade: idosos (vide as nefastas reformas da previdência sempre em pauta), negros, mulheres, LGBTTQI e, tema deste texto, indígenas, sempre sob ameaça de garimpeiros, madeireiros e latifundiários. O bolsonarismo, que além de tudo tem tintas abertamente fascistas, promete ser um implacável algoz desses setores. Mais do que nunca é preciso que todo o campo popular e progressista una forças em uma ampla frente de resistência.
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