Imagem via "Ernest Mandel Internet Archive". |
Pepe Gutiérrez-Álvarez
12 de setembro de 2020
(original aqui)
A tentativa marxista de compreender a realidade para transformá-la através da ação das massas, com um fim aberto e emancipador (a democracia participativa e o socialismo igualitário), partindo da realidade nacional combinada com uma opção internacionalista, cujo breviário codificado por Karl Kautsky se converteu no oficial da Segunda Internacional, triunfou em boa parte dos congressos da mesma — mas quando se celebrou a décima edição, em agosto de 1914 em Viena, as expressões mais contrárias ao militarismo precisaram se impor no debate. Logo eclodiu a Guerra que já de início mostraria uma grande dissociação entre teoria e práticas socialistas (Georges Haupt realizou um estudo impressionante, "Le Congrès manqué. L'internationale à la veille de la Première Guerre mondiale", cuja primeira edição de 1965 ainda não foi traduzida). Comparada com o stalinismo, a social-democracia pode parecer como mais "liberal", como uma tradição tolerante e plural.
Essa contradição entre teoria e prática será, contudo, mais flagrante com a corrupção stalinista da Terceira Internacional, que despontará nos manuais soviéticos atualmente esquecidos mas que influenciaram toda uma tradição escolástica. Podemos dar como exemplo representativo o seguinte: a mesma época em que Palmiro Togliatti redige sua famosa edição do "Tratado da tolerância" de Voltaire, é quando o próprio Togliatti brama contra o "tito-trotskysmo".
Por essa época até a publicação dos clássicos estava congelada, isso quando não eram distorcidos. Assim, boa parte dos últimos trabalhos de Lênin permaneceu oculta até depois do XX Congresso do PCUS, Rosa Luxemburgo era "maldita", e não foi diferente com o legado de Gramsci, com os primeiros de Lukács etc. O próprio Marx estava catalogado como uma obra "acabada", da qual eram escondidos a evolução, os saltos, rupturas e contradições. Nesse contexto, há uma tensão constante entre a defesa da tradição, de um lado, e de outro a necessidade de atualização dos pressupostos teóricos, incluindo uma nova "leitura" de Marx e Engels, bem como dos demais clássicos do marxismo, a partir do maior conhecimento sobre suas vidas e obras.
Imersa em sua história de tensões e debates, a Quarta Internacional busca dar respostas tanto às exigências práticas quanto à necessidade de novas explicações diante das mudanças. Nesse marco tem protagonismo especial a figura de Ernest Mandel, também conhecido como Ernest Germain ou, mais clandestinamente, como "Walter", variações que na opinião de muita gente traziam diferenças e matizes. Mandel seria a face criativa enquanto Germain estaria mais na defensiva, uma dualidade que o próprio Ernest considerada injusta mas que era atestada não apenas por pessoas de fora da Internacional como também da LCR francesa e espanhola. Nascido em Frankfurt no seio de uma família judia, de nacionalidade belga, poliglota, multifacetado e incansável (sua produção teórica, que combinava estudos de peso, trabalhos em revistas e enormes textos de debates internos, é tão monumental que ocuparia bastante tempo de qualquer leitor). Sua vida e obra estiveram dedicadas ao ideal que havia assumido desde a juventude, no qual seu pai, Henri Mandel, teve grande influência desde sua incorporação ainda jovem à resistência antinazi, e à cuja memória dedicará sua primeira grande obra, o "Tratado", e ao seu "espírito intrépido, coração generoso, que me iniciou na doutrina de Marx e me ensinou a combater a exploração e a opressão em todas as suas formas para que todos os homens possam ser irmãos".
Antes de se destacar como o representante mais conhecido do "trotskysmo" dentro do que viria a se chamar de "Nova Esquerda", Mandel havia vivido a aventura militante no abismo da ocupação nazi como membro ativo da Resistência belga, escapou de um campo de concentração e trabalhou desde a clandestinidade para reconstruir a rede desarticulada da Quarta Internacional, na qual apareceria como vértice do Secretariado unificado ao lado de Pierre Frank e de Livio Maitan, que, como se sabe, também começou como ativista da Resistência italiana e se tornou um dos cérebros da Rifondazione. Revolucionário sem revolução, a trajetória militante de Mandel esteve marcada por um forte engajamento que o levou a ser considerado como um "agitador perigoso" pelas autoridades de muitos países.
Já em 1964 foi expulso do partido socialista belga por ser "trotskysta", e seguiu o trabalho de agitação da seção. Apesar de pouco conhecidos, uma parte de seus escritos para a revista "La Bréche" trata da política nacional de seu país adotivo. Foi expulso da França por sua participação nos eventos de Maio de 68, um acontecimento que havia previsto e sobre o qual escreveu abundantemente (a revista "Ação Comunista" publicou no mesmo ano sua primeira abordagem). Também foi expulso das duas Alemanhas, da Oriental como amigo dos dissidentes, e da Ocidental por ser um dos agitadores da esquerda extra-parlamentar. Viajou constantemente a convite das seções da última Internacional, uma atividade ininterrupta explicada não apenas pela sua dedicação militante e teórica mas também pelas discussões abertas pelas universidades e pelas distensões nos partidos comunistas. O fato das diversas seitas trotskystas, já esquecidas, carentes de aportes que tenham sobrevivido ao tempo, lhe tenham tratado pejorativamente como "pablista" (ou "mandelista" como variante de Pablo), mostra apenas como tais seitas ficaram fechadas no culto das "escrituras sagradas" e incapazes de se situar diante das derrotas e das grandes mudanças históricas.
Esteve nas origens da formação da LCR [Ligue Communiste Révolutionnaire] e no processo que levou o ETA [Euskadi Ta Askatasuna] ao "trotskysmo" em sua VI Assembleia. A editora Fontamara publicou boa parte de sua obra, como a "Crítica do eurocomunismo" (1978, tradução de Emili Olcina), que foi apresentada num grande evento de formatura da Universidade de Barcelona com a intervenção de José Maria Vidal Villa. Os veteranos da LCR se lembram dele como um militante cumpridor dos deveres mais básicos, apesar de estar como convidado nessas ocasiões. Debatia com qualquer pessoa e ficava na fila do refeitório como todos os demais. Já há algum tempo Mandel trabalhava também como diretor do Centro de Estudos Políticos da Universidade Livre de Bruxelas, em sua seção flamenca.
Militante de todas as tarefas necessárias, sindicalista que emerge como o cérebro da greve geral belga de 1960, a obra de Mandel alcançou uma ampla difusão em castelhano [o idioma original do presente texto, n.t.] nos anos 60 e 70, e nos anos 80 vieram trabalhos como "Oú va l´URSS de Gorbatchev" (La Brèche, Paris), "The Meaning of the Second World War", "Revolutionary Marxism Today" (Verso Books, Londres) e "The Long Waves of Capitalist Development" (Cambrigde University).
Em 1962 aparece sua primeira grande contribuição, que marca um "antes e depois" na teoria econômica marxista em relação às mudanças ocorridas após a Segunda Guerra com o chamado "neocapitalismo": o "Tratado de Economia Marxista" (ed. ERA, México, 1969, tradução de Francisco Díez del Corral; existe também uma edição cubana que em Paris podia ser encontrada na Librería Ebro, do PCE), que teve como subtítulo "Uma tentativa de explicação". Esse trabalho foi em grande medida uma crítica à obra dos importantes economistas marxistas estadunidenses Paul Baran e Paul M. Sweezy, "O capitalismo monopolista", e teve grande difusão em muitos idiomas e exerceu forte influência em uma parte nada desprezível das novas gerações de marxistas críticos. Uma ampliação do "Tratado" são seus "Ensaios sobre o neocapitalismo" (ed. ERA, México, 1971), que inclui dois anexos que ilustram a repercussão da obra de Mandel nos Estados Unidos, um de David Horowitz ("A favor de uma teoria neomarxista") e outro de Martin Nicolas ("A contradição universal"). Outro aprofundamento mandeliano do debate sobre o "século norte-americano" pode ser encontrado na obra que escreveu na polêmica com o best-seller "O desafio norte-americano" do famoso jornalista francês Jean Servan-Schreiber. Trata-se de "O processo do desafio norte-americano" (Nova Terra, Barcelona. 1970, tradução de Mariangels Mercader e Pere Margenat), e que seria a primeira obra de Mandel publicada na Espanha.
Entre 1963 e 1965 se dedicou a Cuba, ou mais exatamente aos problemas da construção do socialismo em Cuba, um debate teórico entre diversas concepções de métodos e de formas de direção e gestão da economia socialista, e no qual Mandel toma partido ao lado de Ernesto "Che" Guevara, então ministro de Indústria de Cuba. Outros dirigentes cubanos também participam da polêmica: Alberto Mora, ministro de Comércio Exterior; Luis Álvarez Rom, ministro da Fazenda; Marcelo Fernández Font, presidente do Banco Nacional de Cuba e outros. Contra Mandel se posiciona Charles Betelheim, um dos teóricos europeus do maoísmo, sob cuja ótica teorizou sobre a natureza do Estado soviético e do stalinismo em oposição ao "trotskysmo", até que a crise chinesa que provocou a queda do chamado "Bando dos Quatro" e a consequente dessacralização de Mao lhe levou a retificar drasticamente suas posições anteriores. Anteriormente Betelheim foi autor de um vigoroso trabalho sobre a economia alemã sob o nazismo pelo qual foi tachado de "trotskysta" na França em 1945. A edição dos principais documentos se encontra em "O debate cubano. Sobre o funcionamento da lei do valor no socialismo" (ed. Laia, Barcelona, 1974, com prólogo de José Maria Vidal Villa), e trazia dois trabalhos de Mandel, "O grande debate econômico" e "As categorias mercantis no período de transição", este último publicado em Cuba na revista "Nossa Indústria. Revista econômica" (1964).
A editora Fontamara trouxe a lume a já citada "Crítica do eurocomunismo", "A crise" (uma análise da crise econômica no final dos anos setenta que foi imprescindível para a vitória do capitalismo neoliberal), "Da burocracia" (todo um tratado sobre as origens, as razões e o significado dessa casta social), "Debate sobre a URSS" (com Denis Berger), "O pensamento de Leon Trotsky" (1979), "Sobre a história do movimento operário" (tradução de Emili Olcina), que traz estudos sobre a Comuna de Paris; a Primeira Internacional; Rosa Luxemburgo (o texto que que serviu de introdução à edição da Anagrana de 1976, de "O Folheto Junius", chamado também de "A crise da socialdemocracia", com prólogo de Clara Zetkin); 30 perguntas e 30 respostas em torno da nova "História do PCUS", sobre a história oficial stalinista; vários trabalhos sobre Trotsky e a Quarta Internacional. A essa vasta produção se somam "Os estudantes, os intelectuais e a luta de classes" (com introdução do recém-falecido Michel Lequenne, 1979), que traz textos sobre esses temas entre 1968 e 1975; e a "A grande marcha da revolução" (ed. Galilée, 1976, com prólogo de Jean-Marie Vincent), que reúne reflexões de Mandel desde o pós-guerra até o IX Congresso da Quarta Internacional, com um anexo sobre o maoísmo e a "revolução cultural" chinesa. Já a mexicana ERA editou suas duas obras mais importantes, o "Tratado" e "O capitalismo tardio" (México, 1979, tradução de Manuel Aguilar Mora), que constitui – como sublinhou Pierre Anderson – a primeira análise sobre o desenvolvimento do modo de produção capitalista desde a 2ª Guerra Mundial nos marcos das categorias marxistas clássicas. Também há trabalhos sobre controle operário, conselhos operários e autogestão.
Dentre outros trabalhos de investigação e difusão do marxismo vale citar "A formação do pensamento econômico de Karl Marx" (ed. Maspero, Paris, 1967), que analisa o processo evolutivo do pensamento de Marx abarcando os seguintes aspectos: a crítica da propriedade privada e a crítica do capitalismo; a condenação do capitalismo e a justificação socioeconômica do comunismo; o rechaço da aceitação da teoria do valor-trabalho; os manuscritos de 1844 e os "Gundrisse"; de uma concepção antropológica a uma concepção histórica da alienação; a desalineação progressiva na construção da sociedade socialista e a alienação inevitável na "sociedade industrial". Também valem referência "Iniciação à economia marxista", "O lugar do marxismo na História", "O Capital: cem anos de controvérsia em torno da obra de Karl Marx". Mandel também figura entre autores como Roman Rodolsky, Pierre Naville, Samir Amin, Henri Lefebvre, etc em "Lendo o Capital" (Fundamentos, Madrid, 1972, tr. Ignacio Romero de Solís).
A editora Anagrama inclui em sua coleção "Caderno" os seguintes títulos: "Uma introdução ao marxismo" (trad. Angels Martínez Castells), "Problemas básicos da transição do capitalismo ao socialismo (com George Novack), "A teoria marxista do Estado", "Capital financeiro e petrodólares: acerca da última fase do capialismo" (com S. Jaber). Há outros aportes seus em "Contra Althusser" (Madrágora, 1975, tradução de Josep Sarret Grau e prólogo de Manuel Cruz), com textos de Vincent, Bensaïd, Brossat, Avenas, etc. "Dois passos adiantes, dois passos atrás" (ed. El Viejo Topo, Barcelona, 1979, trad. Josep Sarret Grau), polemizando com o PCF e Althusser tendo a "união das esquerdas" como pano de fundo. Uma boa compreensão das ideias de Mandel está condensada em "Marxismo aberto" (ed. Crítica, Barcelona, 1982, t. Gustau Muñoz), tendo como subtítulo "Uma conversa sobre dogmas, ortodoxia e a heresia da realidade", fruto do diálogo ente Mandel e Johannes Agnolis da Universidade Livre de Berlim Ocidental. Descarta que o marxismo esteja em crise e examina criticamente os países socialistas e o movimento operário ocidental; discute como abordar o tema do Estado e sobre a tomada da consciência ecológica. Além disso trata da complexidade da economia moderna e como entender a democracia, o que leva a questões sobre o papel dos partidos políticos e sobre a "centralidade" que o marxismo tem sempre atribuído à classe operária como sujeito revolucionário.
Que eu saiba as últimas edições relacionadas a Mandel são seus "Escritos", que inclui "O marxismo na história e outros escritos", com um prólogo de Miguel Romero, imprescindível para conhecer a recepção da obra mandeliana nas Espanhas (Libros de la Catarata/ Viento Sur, 2005); "O significado da Segunda Guerra Mundial" com prólogo de Enzo Traverso (Viento Sur/ La Oveja Negra, 2015), que nos anos 80 tentaram em vão colocar nas editoras de Barcelona. Mandel não era em nada parecido com um "líder" — era um militante franco, cativante como foi sua companheira Gisele (1935-1982), a quem dedicou um de seus livros agradecendo 16 anos de "amor e companheirismo" e para quem "a espontaneidade e a generosidade para todos os seres humanos era tão natural como respirar".
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